O roubo da morte
Há alguns anos, eu vivia em uma pequena
cidade não muito distante daqui, eu era caixeiro viajante e por isso quase não
permanecia em casa. Eu adorava viajar por todas cidades e vilas próximas,
gostava muito de observar as pessoas conversar com elas, ouvir suas histórias.
A maioria das pessoas também gostava de conversar comigo e eu já houvera
estabelecido amizades em muitos lugares. Adorava a minha profissão, pois ela me
permitia fazer o que eu mais amava que era conhecer lugares e histórias, por
muito tempo, seja por ingenuidade ou escolha inconsciente, eu via e dava
atenção apenas ao lado bom das coisas e das pessoas, meus olhos repousavam na
beleza do mundo e do ser humano.
Um dia, porém, algo muito triste aconteceu,
vi uma criança sendo maltratada e senti aquela dor como se fosse em mim, foi
tudo muito rápido, mas as marcas em meu coração ficaram para sempre. Era um
menino devia ter seus oito, nove anos, ele ajudava um feirante carregando
caixas de frutas que pesavam muito mais do que seu próprio peso, acabou
deixando uma delas cair e as frutas rolaram pelo chão. O feirante, possesso
pelo estrago parcial de sua mercadoria, agarrou o menino pelo braço, dando-lhe
um forte chacoalho, depois colocou-se a bater com muita força na criança, eu,
quando vi, já estava em cima dele, tentando desvinculá-lo do pequeno, mas ele
era muito forte e estava com ódio do menino e também de mim, pude ver em seus olhos
um dos piores sentimentos que nem sonhara existir, alguns segundos depois
caímos todos e ele saiu praguejando e xingando a todos dizendo que o menino
jamais arrumaria trabalho na feira de novo.
A criança machucada, assustada, parecia, ao
mesmo tempo conformada e triste, ela se levantou e saiu andando de cabeça
baixa, eu, ainda em choque, me levantei e fui atrás, mas o menino saiu correndo
sem me dar a chance de ajudá-lo. Fui embora também machucado, eu, que vira até
aquele dia o lado bom do mundo, presenciei os piores sentimentos em uma fração
de segundos, aquele homem mataria o menino e qualquer outro, se alimentasse o
ódio que sentia e aquela pobre criança parecia conformada com seu terrível
destino. Por que havia o ódio, o abandono, a intolerância?
Ao invés de me fortalecer, e, de alguma
forma tentar ajudar o mundo com minhas pequenas ações por menos que isso
pudesse influenciar no todo, me abati, me abati de tal forma que para todo lado
que olhava, via injustiças, tristezas, sofrimentos, como eu não tivera olhos de
ver tudo isso antes, pensava, eu vivia em mundo que não era o de verdade, me
culpava e a cada dia me sentia pior. Alguns amigos notaram o meu estado, mas eu
não sentia vontade de conversar, de contar minha indignação para ninguém, fui
me sentindo cada vez mais solitário, nada fazia sentido, não tinha vontade de
sair, de trabalhar, de ver as pessoas, de viver.
Fiquei assim durante um tempo até que não
pude mais aguentar, uma noite resolvi sair para dar fim aqueles terríveis
sentimentos, não sabia o que faria, mas não aguentava mais, andei sem rumo por
horas, acabei sem querer saindo da cidade e entrei em uma mata fechada que
havia na região, andei por entre as árvores, a natureza era tão linda pensava,
mas porque havia tanta desgraça, tanto sofrimento no mundo, porque nada daquilo
fazia sentido. Um tremor tomou meu o corpo, lágrimas pendiam de meus olhos.
Estava só, só na escuridão da noite, sobre minha cabeça, uma ou duas estrelas,
a lua dormia como todo o resto, o lago estava um breu, não havia luz alguma
para que ele pudesse refletir, as árvores ao meu redor pareciam mortas, eu não
ouvia um ruído. Estava sozinho, no silêncio, encolhido entre as árvores e o
mato, sentia meus ossos congelarem, meus olhos ardiam profundamente, não
conseguia parar de chorar. Precisava ir embora, não podia mais ficar ali, não
podia mais sentir esse imenso vazio, tinha de ir, não havia outro jeito, estava
em um mundo que não me pertencia. Levantei, caminhei até o lago, as folhas
estalaram sob meus pés, parei, olhei para cima, não sabia o que iria encontrar,
se continuaria em outro lugar. As lágrimas agora caiam com maior intensidade,
senti um arrepio, um mal-estar que vinha de dentro um calor frio que me tomava
por inteiro, queria me livrar daquilo, não sabia como, não sabia de nada,
apenas que tinha de sair que tinha de ir embora...
Olhei para o lago e senti medo, medo de
encontrar tudo escuro, de ir para um lugar pior, de não conseguir sanar minhas
dores, minha angústia, medo de não saber, de não poder ver, de não acreditar.
Dei um passo, meus pés tocaram a água gelada, o frio congelante subiu por todo
meu corpo, dei mais um passo, e outros até que a água me chegasse na cintura. A
essa altura já não conseguia sentir minha pele, tremia por dentro e por fora, meus
lábios deviam estar roxos, não conseguiam mais se encontrar. Respirei profundamente,
senti o ar gélido passar por minhas narinas chegando a meus pulmões, expirei –
essa seria a última vez que faria isso. Mergulhei, o frio era extremo, aos
poucos, porém, meu corpo se acostumou, o ar acabara, meus instintos agora me
impulsionavam à superfície, não queria ir, não iria, lutei, lutei comigo mesmo,
lutei pela morte.
E foi aí que ele apareceu, o ladrão que veio
do céu. Em minha luta desesperada para me manter abaixo da superfície, vi de
repente um clarão, e, na minha insanidade pensei que talvez já estivesse morto
e aquela poderia ser a luz do fim do túnel, mas não era. Do clarão surgiu uma
figura extremamente iluminada, ouvi nesta hora, meu nome, mas não parecia que a
figura o dissera, a voz parecia vir de todas as direções como um eco muito mais
intenso, o ser iluminado estendeu sua mão e eu sem saber o que fazer a segurei,
senti neste momento a paz que a muito houvera perdido, a paz que nunca tivera
sentido, não naquela intensidade e magnitude. O ser puxou minha mão suavemente,
meu corpo todo foi com ele numa leveza que eu não conhecia, parecia que eu não
pesava mais do que uma pena, saí da água voando amenamente segurando em sua
mão, e, qual foi minha surpresa quando vi do lado de fora na margem o meu
próprio corpo estendido no chão. Então eu morri, pensei, imediatamente, “quase
José, quase...”. Aquela voz onipresente falou de dentro da minha cabeça, neste
momento vi que havia um fio de luz sutil que me unia ao meu corpo, o ser
iluminado e eu fomos nos aproximando de meu corpo, a voz de novo disse “volte
José, volte, ainda não é a hora de partir”, e, em um movimento instintivo me
acoplei a mim mesmo.
Acordei confuso, achando que estava
sonhando, olhei ao meu redor e não sabia onde estava, foi quando vi o lago que
me lembrei, as lembranças, no entanto, pareciam muito vivas e ao mesmo tempo
distantes, fui roubado, pensei sem querer, um ladrão que veio do céu me roubou
a morte, e sinceramente não me senti mal por isso, foi o melhor roubo que me
acontecera.
Levantei-me e
segui meu caminho até hoje. Sinto-me profundamente grato por tudo que me
aconteceu, mas às vezes, ainda fico com medo de lembrar daquele vazio, daqueles
sentimentos que me fizeram tão mal, às vezes, bem lá no fundo, sinto medo de
voltar a sentir tudo isso, é por isso que vigio constantemente meus pensamentos
e acho que acabei me excedendo em relação ao sentimento da noite, sei que não é
a noite responsável por nada de ruim... pelo contrário, hoje, contando tudo
isso que me aconteceu, percebi que foi na noite que voltei a viver, que ganhei
uma nova chance.
Gueixi estava
maravilhada com tudo que ouvira, amava a vida, amava José e seu amor pela vida,
sabia agora, mais do que nunca, que todos nós podemos cair, mas que também
podemos voar e que nosso voo só é de verdade se levamos conosco um pouquinho do
mundo, um pouquinho de cada um que nos rodeia e José fez isso, caiu, se
levantou e agora voava, voava com a natureza, com as árvores, os pássaros, as
crianças, os adultos da vila, e também com Gueixi, com ela, inclusive, alçaria
voos ainda maiores, juntos passaram a visitar periodicamente cidades próximas levando
conforto e esperanças a quem já a havia perdido e, com amor, viveram ainda por
muito tempo a vida que o ladrão que veio do céu devolveu a José.
Fim
27.05.2017
BCC
BCC