sábado, 27 de maio de 2017

O ladrão que veio do céu - final

O roubo da morte

Há alguns anos, eu vivia em uma pequena cidade não muito distante daqui, eu era caixeiro viajante e por isso quase não permanecia em casa. Eu adorava viajar por todas cidades e vilas próximas, gostava muito de observar as pessoas conversar com elas, ouvir suas histórias. A maioria das pessoas também gostava de conversar comigo e eu já houvera estabelecido amizades em muitos lugares. Adorava a minha profissão, pois ela me permitia fazer o que eu mais amava que era conhecer lugares e histórias, por muito tempo, seja por ingenuidade ou escolha inconsciente, eu via e dava atenção apenas ao lado bom das coisas e das pessoas, meus olhos repousavam na beleza do mundo e do ser humano.

Um dia, porém, algo muito triste aconteceu, vi uma criança sendo maltratada e senti aquela dor como se fosse em mim, foi tudo muito rápido, mas as marcas em meu coração ficaram para sempre. Era um menino devia ter seus oito, nove anos, ele ajudava um feirante carregando caixas de frutas que pesavam muito mais do que seu próprio peso, acabou deixando uma delas cair e as frutas rolaram pelo chão. O feirante, possesso pelo estrago parcial de sua mercadoria, agarrou o menino pelo braço, dando-lhe um forte chacoalho, depois colocou-se a bater com muita força na criança, eu, quando vi, já estava em cima dele, tentando desvinculá-lo do pequeno, mas ele era muito forte e estava com ódio do menino e também de mim, pude ver em seus olhos um dos piores sentimentos que nem sonhara existir, alguns segundos depois caímos todos e ele saiu praguejando e xingando a todos dizendo que o menino jamais arrumaria trabalho na feira de novo.

A criança machucada, assustada, parecia, ao mesmo tempo conformada e triste, ela se levantou e saiu andando de cabeça baixa, eu, ainda em choque, me levantei e fui atrás, mas o menino saiu correndo sem me dar a chance de ajudá-lo. Fui embora também machucado, eu, que vira até aquele dia o lado bom do mundo, presenciei os piores sentimentos em uma fração de segundos, aquele homem mataria o menino e qualquer outro, se alimentasse o ódio que sentia e aquela pobre criança parecia conformada com seu terrível destino. Por que havia o ódio, o abandono, a intolerância?

Ao invés de me fortalecer, e, de alguma forma tentar ajudar o mundo com minhas pequenas ações por menos que isso pudesse influenciar no todo, me abati, me abati de tal forma que para todo lado que olhava, via injustiças, tristezas, sofrimentos, como eu não tivera olhos de ver tudo isso antes, pensava, eu vivia em mundo que não era o de verdade, me culpava e a cada dia me sentia pior. Alguns amigos notaram o meu estado, mas eu não sentia vontade de conversar, de contar minha indignação para ninguém, fui me sentindo cada vez mais solitário, nada fazia sentido, não tinha vontade de sair, de trabalhar, de ver as pessoas, de viver.

Fiquei assim durante um tempo até que não pude mais aguentar, uma noite resolvi sair para dar fim aqueles terríveis sentimentos, não sabia o que faria, mas não aguentava mais, andei sem rumo por horas, acabei sem querer saindo da cidade e entrei em uma mata fechada que havia na região, andei por entre as árvores, a natureza era tão linda pensava, mas porque havia tanta desgraça, tanto sofrimento no mundo, porque nada daquilo fazia sentido. Um tremor tomou meu o corpo, lágrimas pendiam de meus olhos. Estava só, só na escuridão da noite, sobre minha cabeça, uma ou duas estrelas, a lua dormia como todo o resto, o lago estava um breu, não havia luz alguma para que ele pudesse refletir, as árvores ao meu redor pareciam mortas, eu não ouvia um ruído. Estava sozinho, no silêncio, encolhido entre as árvores e o mato, sentia meus ossos congelarem, meus olhos ardiam profundamente, não conseguia parar de chorar. Precisava ir embora, não podia mais ficar ali, não podia mais sentir esse imenso vazio, tinha de ir, não havia outro jeito, estava em um mundo que não me pertencia. Levantei, caminhei até o lago, as folhas estalaram sob meus pés, parei, olhei para cima, não sabia o que iria encontrar, se continuaria em outro lugar. As lágrimas agora caiam com maior intensidade, senti um arrepio, um mal-estar que vinha de dentro um calor frio que me tomava por inteiro, queria me livrar daquilo, não sabia como, não sabia de nada, apenas que tinha de sair que tinha de ir embora...

Olhei para o lago e senti medo, medo de encontrar tudo escuro, de ir para um lugar pior, de não conseguir sanar minhas dores, minha angústia, medo de não saber, de não poder ver, de não acreditar. Dei um passo, meus pés tocaram a água gelada, o frio congelante subiu por todo meu corpo, dei mais um passo, e outros até que a água me chegasse na cintura. A essa altura já não conseguia sentir minha pele, tremia por dentro e por fora, meus lábios deviam estar roxos, não conseguiam mais se encontrar. Respirei profundamente, senti o ar gélido passar por minhas narinas chegando a meus pulmões, expirei – essa seria a última vez que faria isso. Mergulhei, o frio era extremo, aos poucos, porém, meu corpo se acostumou, o ar acabara, meus instintos agora me impulsionavam à superfície, não queria ir, não iria, lutei, lutei comigo mesmo, lutei pela morte.

E foi aí que ele apareceu, o ladrão que veio do céu. Em minha luta desesperada para me manter abaixo da superfície, vi de repente um clarão, e, na minha insanidade pensei que talvez já estivesse morto e aquela poderia ser a luz do fim do túnel, mas não era. Do clarão surgiu uma figura extremamente iluminada, ouvi nesta hora, meu nome, mas não parecia que a figura o dissera, a voz parecia vir de todas as direções como um eco muito mais intenso, o ser iluminado estendeu sua mão e eu sem saber o que fazer a segurei, senti neste momento a paz que a muito houvera perdido, a paz que nunca tivera sentido, não naquela intensidade e magnitude. O ser puxou minha mão suavemente, meu corpo todo foi com ele numa leveza que eu não conhecia, parecia que eu não pesava mais do que uma pena, saí da água voando amenamente segurando em sua mão, e, qual foi minha surpresa quando vi do lado de fora na margem o meu próprio corpo estendido no chão. Então eu morri, pensei, imediatamente, “quase José, quase...”. Aquela voz onipresente falou de dentro da minha cabeça, neste momento vi que havia um fio de luz sutil que me unia ao meu corpo, o ser iluminado e eu fomos nos aproximando de meu corpo, a voz de novo disse “volte José, volte, ainda não é a hora de partir”, e, em um movimento instintivo me acoplei a mim mesmo.

Acordei confuso, achando que estava sonhando, olhei ao meu redor e não sabia onde estava, foi quando vi o lago que me lembrei, as lembranças, no entanto, pareciam muito vivas e ao mesmo tempo distantes, fui roubado, pensei sem querer, um ladrão que veio do céu me roubou a morte, e sinceramente não me senti mal por isso, foi o melhor roubo que me acontecera.

Levantei-me e segui meu caminho até hoje. Sinto-me profundamente grato por tudo que me aconteceu, mas às vezes, ainda fico com medo de lembrar daquele vazio, daqueles sentimentos que me fizeram tão mal, às vezes, bem lá no fundo, sinto medo de voltar a sentir tudo isso, é por isso que vigio constantemente meus pensamentos e acho que acabei me excedendo em relação ao sentimento da noite, sei que não é a noite responsável por nada de ruim... pelo contrário, hoje, contando tudo isso que me aconteceu, percebi que foi na noite que voltei a viver, que ganhei uma nova chance.

Gueixi estava maravilhada com tudo que ouvira, amava a vida, amava José e seu amor pela vida, sabia agora, mais do que nunca, que todos nós podemos cair, mas que também podemos voar e que nosso voo só é de verdade se levamos conosco um pouquinho do mundo, um pouquinho de cada um que nos rodeia e José fez isso, caiu, se levantou e agora voava, voava com a natureza, com as árvores, os pássaros, as crianças, os adultos da vila, e também com Gueixi, com ela, inclusive, alçaria voos ainda maiores, juntos passaram a visitar periodicamente cidades próximas levando conforto e esperanças a quem já a havia perdido e, com amor, viveram ainda por muito tempo a vida que o ladrão que veio do céu devolveu a José.

Fim                                                                                                                                                 

27.05.2017
BCC

domingo, 14 de maio de 2017

O ladrão que veio do céu - VI

A noite

José e Gueixi começaram a subir a montanha. Demoraram muito, muito mais do que José pretendia, Gueixi parava a todo instante, encantava-se com a beleza e a magia daquela privilegiada vista. Olhava para a floresta, para os pássaros, para o céu... nele encontrou o sol que lindo estava naquele finalzinho de tarde, preparava-se para dormir e fazia questão de mostrar-se da mais bela maneira para não correr o risco de ser esquecido enquanto a lua desfilasse.

Gueixi jamais o esqueceria, jamais esqueceria aquela montanha e tudo que ali presenciou. Sua alma estava tão feliz, tão maravilhada que não conseguia parar de sorrir. José, por sua vez, amava ainda mais a natureza, pois estava na companhia de mais uma obra-prima do criador. Apenas a excessiva demora preocupava-o, já era tarde e a noite aproximava-se ele queria estar em casa antes do sol adormecer, não gostava da noite.
Finalmente chegaram:

- Que linda casinha! – exclamou Gueixi.

- Obrigado! Vamos entre... – convidou José.

O escuro logo tomou conta da montanha, Gueixi observava a noite pela janela:

- Vamos lá fora?

José negou, não queria contraria-la, mas tampouco não gostava de sair neste horário. Gueixi decepcionou-se, amava a noite, a lua, as estrelas, o negro azul do céu, do topo da montanha a vista deveria ser ainda mais bela. Suas feições, no entanto, logo se transformaram.

- Bom, você irá perder todo o encantamento da lua – disse com um sorriso dirigindo-se a porta.

Ela mais parecia uma borboleta a voar pela noite mostrando a todos sua liberdade, não temia nada, pulava e dançava com as estrelas e refletia a beleza da lua. José parado ao pé da porta conferia a felicidade da companheira.

- Ora, porque você não vem? – a moça perguntou.

- Não gosto muito da noite – limitou-se a responder.

- Mas como pode não gostar da noite? É tão bela, tão magnifica é a outra face do dia...

- Não sei, talvez seja por medo.

- Medo? Medo do quê? Você não teria medo dos animais, muito menos da floresta, você vive tão em sintonia com tudo. Não poderia ser medo do escuro também, desse negro azul imantado de pontinhos luminosos a nos guiar, tampouco medo da lua... sinceramente, não imagino o que você poderia temer.

- Talvez de uma noite, da lembrança de uma noite... – respondeu José cabisbaixo.

Um profundo silêncio se fez ouvir, Gueixi olhou para José com curiosidade e compaixão, seu coração batia mais forte gostaria de saber o que ocorrera queria poder ajudar de alguma maneira, não queria que José tivesse tão má impressão da noite – sua grande amiga – de uma atmosfera tão maravilhosa, logo ele que enxergava todo com olhos de ver que era tão especial que vivia em harmonia com o cosmos. Ah! Como gostaria que José enxergasse a noite como ela o fazia, o azul escuro, a imensidão, o silencio, o brilho, a luz, a cumplicidade que a noite tinha com os nossos mais íntimos segredos, a presença onipotente daquela que não dizendo nada, diz tudo que precisamos.

O coração de José também batia mais forte, nunca falara sobre aquele momento sombrio, se sentia envergonhado, queria esquece-lo fazia de tudo para isso, mas, no fundo, sabia que ainda não havia superado, não conseguia sentir o prazer pela noite, a outra face de seu amado dia. Gostaria de falar, contar à Gueixi sentia-se, porém ao mesmo tempo, incomodado, não sabia se teria coragem.

Gueixi finalmente rompeu o silêncio, tão bom em alguns momentos e tão doloroso em outros:

- Se você quiser, se isso de alguma forma te fizer bem e te ajudar, eu te ouvirei com amor. De todo seu coração você pode dividir isso comigo que eu também com todo meu coração aceitarei. Mas se preferir calar, se não sentir que é o momento, também o respeitarei com muito amor.

José olhou nos olhos de Gueixi, penetrando-os profundamente, viu neles todo aquele amor que ela dissera. Percebeu neste momento que estava pronto, pronto para se libertar, sentiu também que Gueixi o ajudaria, que seu amor puro, honesto sem julgamentos o ajudaria. Saiu, pegou em sua mão, sentaram ambos na grama à luz da lua protegidos pelo brilho das estrelas pela magnitude do marinho azul, e fez o que melhor sabia fazer – contou-lhe uma história, a sua história...


Continua...

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Certamente cedo venho



“Certamente cedo venho”. A bem da verdade, não precisaria nem vir cedo, basta que venha, que cumpra tua promessa. Venha, e, nos salve a todos nós de nossas misérias, nossos medos, nossos defeitos. Venha e nos ajude a nos salvarmos de nós mesmos. Ajude-nos a enxergar o caminho, as promessas de luz. Venha, meu amor, e nos ensine a amar como só tu e os teus amaram. Venha, por favor, não deixe de vir, precisamos de ti, mais do que nunca precisamos de ti. Só teu amor pode nos salvar, só teu amor pode nos inspirar, é por isso que peço, venha, demore o tempo que for mas venha.


30.12.2015

Àquele que não estando aqui, nunca deixou de estar conosco
BCC

Deixem aqui


Foto por BCC


Vão, vão embora e levem o barulho com vocês. Deixem aqui o silêncio, o sol maravilhoso e seu calor dourado que me aquece. Deixem aqui o brilho na grama verde que se estende até o quase fim da vista. Deixem o céu azul claro, as nuvens sem graças pela presença majestosa do sol. Deixem a vigia que anda calada para lá e para cá. Deixem as poucas pessoas indo e vindo. Deixem os insetos voarem, as flores vermelhas brilharem. Deixem a grama e o mato exalarem seu cheiro. Deixem o vento de leve me tocar o cabelo. Deixem a tarde passar tranquila em seu tempo. 

20.05.2015
BCC

O ladrão que veio do céu - V

A Encantadora de Almas - continuação

José começou: Há um tempo voava por entre todas as flores uma belíssima borboleta que adorava beijá-las e tirar disso seu sustento, viveria plenamente feliz com sua vida não fosse uma dúvida que lhe perseguia: o que ela seria quando deixasse de ser borboleta?
Certo dia, encontrou outras de sua espécie e perguntou-lhes a respeito, ao ouvirem, as outras borboletas responderam numa só voz:
- Ora, quando você deixar de ser borboleta você estará morta!
- Morta? O que é isso?
- Morta, de morrer... você não sabe o que é morrer? É quando você deixa de existir...
- Ah, mas então eu já morri uma vez quando era lagarta! Deixei de existir como era para me tornar o que sou, uma borboleta! O que eu gostaria de saber é o que eu serei quando morrer como borboleta, qual será a minha próxima transformação, entendem?! – Respondeu a bela borboleta.
- Não haverá uma próxima transformação, quando você morrer deixará de existir completamente, seu corpo ficará sem vida e logo será alimento de outros insetos.
A borboleta se assustou tanto com a resposta que voou rapidamente sem ao menos se despedir. Ela não conseguia acreditar, aquilo não era possível, não poderia ser verdade, como não se transformaria mais? Qual era o propósito de tudo então? Resolveu seguir sua jornada com apenas com a dúvida inicial e não com aquela hipótese terrível.
Algum tempo depois, a borboleta avistou a mais linda das flores – uma rosa cor-de-violeta maravilhosa, pousou nela:
- Olá – disse a rosa
- Oi, sabia que você é a mais bela flor que já vi. E olha que conheço muitas flores.
- Ora, obrigada querida, vejo que é uma borboleta muito feliz, mas que traz algo em seu coraçãozinho que não deixa sua felicidade se tornar plena.
- Além de linda, você também é advinha! – respondeu a borboleta, surpresa – é que eu gostaria de saber o que eu serei quando deixar de ser borboleta, algumas de minha espécie disseram-me que eu morreria, que deixaria de existir para sempre, que tudo acabaria, mas isso não faz sentido para mim, como tudo pode acabar? Por que vivemos e nos transformamos a cada dia, por que há um mundo tão lindo se o fim é deixar de existir? E como é possível isso? O nada não existe, existe? Tudo o que eu conheço é vida e cor, não consigo imaginar o nada... – desabafou a pequena.
- Pois eu digo-lhe que está certa querida, tudo é vida e por isso deve viver plena e intensamente, voando feliz cumprindo sua linda missão de alegrar as flores e a si mesma. E, acima de tudo, acredite, meu bem, no Ser Maior que criou a vida e que nunca desampara uma criação sua. Siga em paz.
As palavras da rosa preencheram de esperança a pequena borboleta que agradecida retribui-lhe com um lindo beijo de amor e seguiu seu caminho por muito tempo distribuindo alegria e afeto por onde passava.
Um dia, a borboleta sentiu-se cansada, pousou sobre o tronco de uma árvore, sentia que seu corpinho já não aguentava mais voar como antes, suas asas estavam enfraquecidas, neste momento, lembrou-se da rosa e do que ela lhe dissera. Será que agora era a hora de sua nova transformação? Em paz e confiante, deixou toda sua existência nas mãos do Ser Maior, acreditava plenamente que algo maravilhoso aconteceria e que se transformaria para seu próprio bem e para o bem do mundo.
Foi quando suas asas se soltaram e envolveram seu delicado corpinho, em um mágico movimento foi saindo de si e se transformando em uma bela mulher tão leve quanto seu estado anterior, linda, serena e que encantaria a todos, pois ela seria a encantadora de almas.



Continua...

A realidade extrapola a imaginação

Foi me dito que a realidade extrapola a imaginação, e, confesso que isso me tocou de alguma sorte, logo eu, que sou toda imaginação, que ado...