domingo, 23 de abril de 2017

O ladrão que veio do céu - IV

A Encantadora de Almas

Gueixi era o nome dela ou pelo menos foi como se apesentou.

José já estava perto do pé da montanha, estava ansioso para ver as crianças – havia sonhado com elas – qual foi sua surpresa ao notar que as pequenas criaturinhas não o esperavam como de costume. José soube que havia algo estranho, tratou, pois, de procurá-las, encontrou-as perto da escola, todas rodeavam um ser só, um ser que ele não conseguiu identificar, chegou mais perto, agora dava para ver, ver a mais bela criatura que existia.

Gueixi era uma linda oriental de olhos doces e encantadores, vestia-se com as cores da mais bela borboleta e tinha uma leveza de espírito que lhe permitia voar sem ao menos tirar os pés da terra, falava calmamente, as palavras eram-lhe suaves e carinhosas. José encantou-se, como haveria alguém que não se encantasse com ela?

Logo as crianças entraram na escola e os dois ficaram a sós, José convidou-a para ir à biblioteca, foram direto para o jardim dos fundos, ele não se cansava de admirá-la, ali entre as flores e o verde das plantas ela se tornava ainda mais bela, era como se fizesse parte de tudo aquilo de uma maneira tão extraordinária que José não conseguia explicar. Gueixi reluzia, seus olhos, seus negros cabelos brilhavam a luz do sol e ela parecia dançar em meio tanta beleza, suas roupas coloridas pareciam um espelho de sua alma, e seus traços refletiam a mais pura arte do criador.

José sentou-se na grama, Gueixi o acompanhou, ela olhava deslumbrada para todos os lados:

- É lindo aqui!

José sorriu, as palavras lhe escapavam.

- Você mora na vila? – Ela perguntou.

- Não, moro no topo da montanha – respondeu José.

Gueixi levantou-se para avistar melhor a montanha, admirou-se a tal ponto que pediu a José que lhe levasse lá, ele concordou, todavia, teria de ser a tarde, pois logo as crianças chegariam para mais uma história.

Ficaram ali algumas horas à espera das crianças, José dividiu sua fruta com Gueixi, não conversaram muito, não precisavam – suas almas pareciam já se conhecerem há tempos –ambos compartilhavam do amor pela natureza e durante a manhã ficaram a admirá-la em silêncio, por vezes uma palavra ou outra surgia entre sorrisos e encantamentos. José também mostrou alguns livros a Gueixi e falou de sua paixão pelas histórias, a moça ficou curiosa para ouvir uma de suas narrativas.

O tempo passou preguiçosamente e as crianças chegaram, estavam agitadas, queriam todas sentar ao lado de Gueixi, tocá-la ver se ela era real. Formou-se um pequeno tumulto que logo se dissipou, não teria como haver indisposições perto de Gueixi, seu olhar tranquilo, sua voz doce e sua energia revigorante fazia bem a todos.

José começou: ...

Continua




sábado, 15 de abril de 2017

O ladrão que veio do céu - III


Louis e o amor

As crianças almoçavam em suas casas e logo seguiam para o pequeno jardim onde José as aguardava. Todas as tardes, José contava as mais lindas histórias para aquelas almas tão cheias de vida e de amor, às vezes, alguns adultos se juntavam ao grupo, e como ficavam também fascinados com tão belas narrativas:

Há muito tempo vivia em uma terra distante um coração muito dócil e caridoso, um coração que enchia de amor e alegria as almas que o rodeavam. Esse coração tinha um encantado dono: Louis, juntos formavam uma ótima dupla, sempre disposta ajudar e felicitar todos que encontravam.
Louis era um jovem fascinante, tinha olhos mágicos, quem quer que fosse que se encontrasse com eles ficaria feliz, os olhos de Louis brilhavam tanto que não havia uma só alma que não gostasse de contemplá-los.

A perfeição estava para Louis assim com o sol está para o céu, seu rosto fora delicadamente desenhado por mãos divinas, todo seu espirito havia recebido um sopro celestial e Louis tratava de espalhá-lo por onde fosse. Ele era realmente encantador.

Um dia, o jovem passeava por entre as árvores que rodeavam seu vilarejo quando ouviu um choro repleto de tristeza. Encontrou um menininho recostado em um tronco, chorava copiosamente abraçando as perninhas contra o peito e com a cabecinha pousada sobre os joelhos. Louis se aproximou, a tristeza e o desespero de tal criaturinha o impressionaram.

O pequeno levantou a cabeça, seus olhinhos azuis estavam encharcados, ele não conseguia parar de soluçar, quando depois de um tempo, as lágrimas em fim pareciam deixá-lo, uma nova onda de tristeza se apoderava dele. Inclinava a boca, espremia os olhinhos e choro recomeçava ainda com mais força. Os sons que produzia mais pareciam pedidos de socorro tamanha a dor que sentia.

Louis não pôde aguentar, abraçou o pequeno com muito amor e lhe transmitiu uma gama de energias positivas, os minutos foram se passando e a calma aos poucos foi tomando o lugar do choro. Soluçava ainda quando começou a contar o motivo de seu desespero:

- Eu, eu perdi o meu mundo... perdi o meu mundo – começou a chorar novamente e Louis o abraçou de novo, desta vez, no entanto, o pequeno retribuiu. Buscou naquele abraço forças para continuar a viver e as encontrou. Voltou a falar:

- Meus paizinhos e eu sempre passeávamos de jangada no rio – as lágrimas escorriam de seus olhos – era nosso passeio preferido. Todas as tardes pegávamos a jangada e íamos rio abaixo. Era tão delicioso, a gente conversava, ria, admirava a paisagem, comia frutas, brincava. Tudo tão, tão bom. Hoje, a gente estava lá no rio, estávamos tão felizes. Papai contou uma coisa engraçada rimos, os três, até doer nossa barriga. Depois nos abraçamos e dissemos que nos amaríamos para sempre – o pequeno começa agora a soluçar mais e mais – aí a gente viu uma árvore que tinha um galho engraçado, desse galho pendia uma única maçã. Então, mamãe disse para eu ir pegá-la, pulei do barco, nadei um pouquinho e quando saltei para margem disse que aquela seria a maçã mais gostosa que comeríamos juntos. Subi na árvore, e quando já estava em cima do galho torto, percebi que a jangada não estava mais ali. Vi que meus pais estavam perto da descida da cachoeira, vi papai remando com toda sua força, toda sua vontade contra o destino que os esperava, vi mamãe chorando e me olhando, seus lábios pronunciavam que me amava para sempre, e então eles se foram. Meus paizinhos se foram, meu mundo acabou.

O menininho chorava, chorava tanto que era possível enxergar sua alma, Louis também chorava, os dois se abraçaram, o jovem disse para a criança que cuidaria dela que eles seriam melhores amigos, disse também que naquele momento seria difícil aceitar e entender o que havia acontecido, mas que com o tempo o pequeno perceberia que os três ainda ficariam juntos e que se eles partiram agora é porque precisava ser assim – os paizinhos dele haviam cumprido suas missões e aonde quer que estivessem sempre o amariam e o auxiliariam a também cumprir sua missão e ainda, que, quando chegasse o momento certo estariam juntos novamente porque o amor que sentiam era grande demais para acabar.

O menininho aceitou as palavras de Louis como um esfomeado aceita um pedaço de pão, e assim seguiram seus caminhos.

Não havia uma só alma que não tivesse sido tocada pela história de José, quando a narrativa acabara, ficaram todos em absoluto silêncio, ninguém ousou dizer uma só palavra, pensavam apenas. O próprio José calou e refletiu sobre o que havia acabado de contar, até que disse:

- Por hoje é só, agora corram para suas casas, abracem seus pais com muito amor e lhes digam o quanto os amam!!

Assim que as crianças absorveram as palavras de José saíram correndo para seus lares. José também se levantou, ficou um tempo a observar o vazio que ficou ali presente e se foi. Durante a caminhada, ele se lembrou dos rostinhos das crianças enquanto o ouviam, de como se sensibilizaram com a história, aproveitou e refletiu um pouco sobre o que contara. José nunca previa uma história, as palavras simplesmente iam saindo de sua alma e dando vida a seres encantadores.


A noite já ia se aproximando quando José chegou a sua casinha no topo da montanha. Ele, apesar de seu amor por tudo que era da natureza, não apreciava muito a noite. Para ele, cada anoitecer representava uma pequena morte e cada amanhecer um nascimento, e, José queria nascer, nascer quantas vezes fosse necessário para aproveitar tudo o que lhe era dado com tanto amor. Assim que a noite chegava, ele tratava de fechar a porta e a janela, jamais saia a noite. Até um dia...


Continua

domingo, 9 de abril de 2017

O ladrão que veio do céu - II


E agora José?

O sol tímido chegava ao céu, José já estava acordado há um certo tempo, olhava pela janela. Ao amanhecer tudo ganhava vida, os passarinhos apareciam com suas canções, as árvores pareciam mais belas e fortes, o céu clareava-se e o sol iluminava todos que o permitissem cumprir sua missão. José permitia-o, sempre ao acordar abria a janela e ficava a observar o sair da noite e o despertar da manhã, como isso o fazia bem, sentia-se renovado, feliz. Ficava ali até a noite desaparecer por completo, depois saía.

Descia a montanha observando a paisagem, mais do que isso, contemplando-a, José se sentia privilegiado por fazer parte da vida, por estar entre os que podiam admirar e usufruir da natureza. Por Deus! Como ela era perfeita! Como tudo funcionava maravilhosamente bem, como tudo se encaixava.

À medida que caminhava, o sol brilhava mais e como consequência de seu brilho os animais e as árvores se alegravam e transbordavam felicidade, José não conseguia e nem queria conter sua alma, sorria, sorria profundamente.

Eram várias as vezes que parava, algumas, ficava a deslumbrar o céu, observava as formas das nuvens, as cores que o sol produzia, os pássaros e suas incríveis peripécias, chegava a ficar um certo tempo absorto por aquele espetáculo. Outras vezes, contemplava a vista da floresta, aquela imensidão verde formada pelas mais variadas árvores, eram tão belas, tão majestosas.

José continuava a caminhar, eram muitos os momentos que desejava abraçar o mundo de uma só vez para poder sentir tudo o que havia nele. Sua admiração era tão grande que, em algumas ocasiões, gostaria de sair de seu corpo e se jogar ao vento para assim estar em todos os lugares e usufruir cada pedacinho da vida. José sabia que fazia parte daquela maravilhosa sinfonia, achava, porém, tudo tão perfeito que desejava maior contato com a vida.

Ele continuava seu caminho, caminhava até chegar a uma pequena vila ao pé da montanha, lá era recebido com alegria pelas crianças – vinham todas dar-lhe boas vindas com sorrisos enormes do fundo de suas almas. José amava as crianças e retribuía todo carinho, ele adorava ficar entre aquelas maravilhosas criaturinhas. As crianças, sem dúvida, eram seres especiais, pois sabiam viver suas vidas plenamente, conseguiam tudo que queriam com determinação e alegria e se por acaso algo de inoportuno lhes ocorresse e lhes magoasse choravam, choravam copiosamente, mas em poucos minutos esqueciam tudo e estavam de volta a luta com muita alegria e coragem. Faziam assim como a natureza, que não desperdiça um só minuto a remoer mágoas.

O que incomodava José, no entanto, é que muitas crianças ao crescerem se esqueciam de viver a vida, e, ao invés disso, deixavam-na passar por seus olhos como em um filme. Nos momentos alegres, não vibravam, e, nos de tristeza, tentavam passar com indiferença – pensavam ser fortes dessa maneira, evitando as lágrimas – mas ser forte, para José, era viver de verdade tanto a alegria quanto a tristeza, chorar se necessário, aprender com os erros e seguir em frente. Ele desejava do fundo de sua alma que as crianças ao adquirirem maturidade não deixassem de viver verdadeiramente, e, que se por infortúnio do destino ou seu próprio, elas se esquecem disso que pudessem retomar o caminho da felicidade.

Depois das boas vindas, as crianças iam para a escola e José, para a pequena biblioteca da vila. Já havia lido e relido todas as obras, mas não se cansara, pelo contrário, adorava ler novamente aquelas palavras que juntas se transformavam em deslumbrantes mundos. Sempre que relia encontrava algo novo, algo que seus olhos não haviam ainda reparado e se deliciava com a inquietante surpresa.

Ficava ali até a hora em que as crianças saiam da escola, depois ia para fora, sentava em um pequeno jardim nos fundos da biblioteca, comia uma fruta e esperava, esperava aquele lugar se encher de coraçõezinhos curiosos.


Continua

sábado, 1 de abril de 2017

O ladrão que veio do céu - I


O roubo

Um tremor tomava-lhe o corpo, lágrimas pendiam-lhe dos olhos. Estava só, só na escuridão da noite, sobre sua cabeça, uma ou duas estrelas, a lua dormia como todo o resto, o lago estava um breu, não havia luz alguma para que ele pudesse refletir, as árvores ao seu redor pareciam mortas, não se ouvia um ruído. Estava sozinho, no silêncio, encolhido entre as árvores e o mato sentia seus ossos congelarem, seus olhos ardiam profundamente, não conseguia parar de chorar. Precisava ir embora, não podia mais ficar ali, não podia mais sentir esse imenso vazio, tinha de ir, não havia outro jeito, estava em um mundo que não lhe pertencia. Levantou, caminhou até o lago, as folhas estalaram sob seus pés, parou, olhou para cima, não sabia o que iria encontrar, se continuaria em outro lugar. As lágrimas agora caiam com maior intensidade, sentiu um arrepio, um mal-estar que vinha de dentro um calor frio que lhe tomava por inteiro, queria se livrar daquilo, não sabia como, não sabia de nada, apenas que tinha de sair que tinha de ir embora...

Olhou para o lago e sentiu medo, medo de encontrar tudo escuro, de ir para um lugar pior, de não conseguir sanar suas dores, sua angústia, medo de não saber, de não poder ver, de não acreditar. Deu um passo, seus pés tocaram a água gelada, o frio congelante subiu por todo seu corpo, deu mais um passo, e outros até que a água lhe chegasse na cintura. A essa altura já não conseguia sentir sua pele, tremia por dentro e por fora, seus lábios estavam roxos, não conseguiam mais se encontrar. Respirou profundamente, sentiu o ar gélido passar por suas narinas chegando a seus pulmões, expirou – essa seria a última vez que faria isso. Mergulhou, o frio era extremo, aos poucos, porém, seu corpo se acostumou, o ar acabara, seus instintos agora o impulsionavam à superfície, não queria ir, não iria, lutou, lutou consigo mesmo, lutou pela morte.


Continua

A realidade extrapola a imaginação

Foi me dito que a realidade extrapola a imaginação, e, confesso que isso me tocou de alguma sorte, logo eu, que sou toda imaginação, que ado...