segunda-feira, 10 de julho de 2017

A bailarina


A bailarina

                                  Por B.C.C

Essa menina tão pequenina quer ser bailarina”, uma lágrima pendeu de seus olhos quando eles se reencontraram com o verso de Cecília. Também ela era Cecília, e aquele poema de infância representava sua vida.
Desde a mais tenra idade se lembrava de que queria ser bailarina, aquilo não era um capricho de criança, mas o sonho de uma vida. Convenceu, não sem muito custo, sua mãe a colocá-la numa escola de balé, e, com seus sete anos iniciou a mais linda fase que ela jamais sonhara. Passou a infância e a adolescência inteiras dançando, nada mais importava para Cecília, tudo era a música e seu corpo deslizando por ela.
Com o tempo, o amor só fez crescer, menina-mulher continuava a dançar com a alma, encantando a todos com sua arte, mas a vida nem sempre generosa lhe deferiu um golpe quase fatal, teve de largar a dança “para começar a viver de verdade” – foram as palavras que lhe disseram. Cecília, no entanto, deixou de viver quando parou de dançar, agora anos mais tarde, muitos anos mais tarde reencontrava com aqueles versos que exprimiam sua alma e qual não foi sua surpresa a achar neste mesmo livro de sua poetisa preferida, uma foto antiga, desgastada já pelo tempo – sua última foto como bailarina.
Era já moça, estava linda, a foto fora tirada após o último espetáculo de sua vida, estava radiante naquele dia, interpretava a fada açucarada de Tchaikovsky, personagem cobiçado por muitas na companhia. Conseguira após todos aqueles anos, um papel de destaque por seu esforço e trabalho árduos, e como era belo vê-la dançar, Cecília flutuava pelo palco e parecia voar por entre a música, tudo se encaixava e o encantamento tomava conta de todos os presentes.
Ao olhar a foto, porém, Cecília sentiu um amargor tão profundo, que era como se toda aquela terrível sensação de ter de parar de dançar voltasse a lhe consumir o restante de alma que sobrara. Fora como se tivessem lhe arrancado o coração do peito, doía-lhe até mesmo no corpo, e durante muitos e muitos anos ela não pôde nem ouvir falar em dança ou algo lhe remetesse àquele mundo, ao seu mundo.
Mas tantos anos depois, ela ainda sentia todo o amor que a foto representava, ah! Como desejava voltar no tempo e jamais ter parado de dançar houvesse o que houvesse. Como gostaria de estar ainda com aquele vestido, com as sapatilhas nos pés e dançar, simplesmente dançar por toda eternidade. Mas agora, ela já estava velha, não poderia mais dançar, pensou com tristeza. Ou poderia?
Numa súbita agitação, Cecília levantou-se e pôs-se a buscar desesperada algo em seu armário, na prateleira mais alta de todas, ela achou uma caixa grande empoeirada, retirou a caixa com todo cuidado, sentou-se em sua cama e se deteve alguns minutos apenas a olha-la. Depois, como que criando coragem, retirou a tampa como se fosse encontrar o que de mais precioso existia. Sentiu seu coração bater mais forte quando seus olhos encontraram o vestido da fada, ela o havia guardado, o retirou da caixa, será que ainda serviria em seu corpo franzino, pensou, sim, com certeza serviria. Ela o vestiu com extremo zelo como em um ritual mágico, nada poderia estragar aquele que era o seu último laço com o passado, retirou da caixa também as sapatilhas, essas eram o seu mais precioso tesouro, calçou-as em seus pés finos e já desacostumados ao sofrimento habitual que vivera todos aqueles anos, ainda assim, pareceu que nada tinha mudado, seus pés se regogizaram com o espaço tão apertado que massacrava os dedos numa relação de amor e dor que só quem dança pode realmente conhecer.
Depois, foi para frente do espelho, ficou com receio, é verdade, mas se olhou e viu, viu que ainda estava lá, que ainda estava viva, que não havia morrido. Ela era Cecília ainda, era bailarina ainda, e ninguém jamais poderia tirar isso dela. Em um rápido movimento penteou os cabelos como estavam na foto e colocou o CD do Lago dos Cisnes. Agora, poderia voltar a viver. Dançou, dançou como se nada mais importasse, e em verdade, nada importava mesmo, só sua dança, só sua dança permaneceria por toda eternidade e assim Cecília viveu e assim Cecília morreu.


10.07.207
Ilustração por Di

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